19.5.12

cardoso destinatário

cardoso andava espantado com a vida que se assomou à caixa do correio. cartas dali, embrulhos de-lá longe, postais internacionais, correio prioritário. mal sabia cardoso que o selo que lhe haviam colocado para descargas dérmicas de analgésico tinha este efeito secundário, de tornar verde e central a caixa que outrora apenas guardava contas, convocatórias e variados cupões. e assim foi. num dia cardoso arrumava com as dores, selado com prioridade, no outro magnetizava cartas, encomendas e outros conteúdos postais. admirado com o efeito, abria os braços de manhã para os fechar só à tarde repletos de embrulhos, envelopes recheados e os postais mais variados. razões bastantes para cardoso andar feliz da vida e sem dores, selado com muito gosto.
até que um dia, o exército de remetentes veio pedir respostas e cardoso viu-se aflito com tantos destinatários.


mas foi assim que tudo recomeçou e os selos voltaram a ser colados com cuspe.



9.5.12

mar&ana


são amigas há trinta anos e todas as semanas se encontram no tanque para lavar a roupa e a vida. ali para lubeirinha, onde a estrada mal amanhada amaldiçoa costas e cabelos armados. 
depois, sentam-se lado a lado e à sombra mal parada da roupa a secar dobram em quatro, o tempo. a mais nova lê as cartas que recebem e a mais velha recorta cupões de desconto. despacham toda a correspondência e uma vez por mês fazem o percurso dos supermercados, armadas de cupões e sobrancelhas inclinadas. ninguém as enrola, nem por carta nem promoção. sabem ao que não vão e voltam sempre antes da roupa ficar tesa de tanto sol. 
quando chove, dão uns pontos na vida dos outros, nos degraus abrigados que dão para a estrada e adivinham as cores dos carros que hão-de vir. conforme acertam, um desejo que se concretiza. e não pode ser um clássico.


a cada um a sua tardada.





8.5.12

célio cupido diante de peitos abertos


no outro dia, célio cupido lavava a loiça e começou a agrupar em pares as coisas semelhantes como se houvesse espaço para caras metades de objectos. pareceu-lhe tudo melhor e fez o mesmo com a cor das molas, enquanto estendia um cesto de roupa.
depois viu gente a apaixonar-se porque lhes via tremerem as mãos enquanto transacionavam papéis de assuntos relevantes. havia até quem tremesse os lábios quando se preparava para dizer algo menos ortodoxo. criou-se uma espécie de angústia e o aqui e agora abateu-se sobre os homens.
dias mais tarde, havia flores e cartas por aí. suspenderam-se os conflitos armados da intimidade. havia acrobacias na rua para saltar para os colos dos parceiros. e beijos mais demorados que os do senhor doisneau. sobretudo, havia disponibilidade e corações delgados.
mais tarde, ainda a madrugada arrancava da calçada, quando gente-só tomava o dia e caminhos nas suas vidas presentes, chuvosas e muitas vezes chorosas nessa intimidade desocupada. porque nunca se falava de amor de improviso.
inventaram-se cursos de sedução, de paciência e de tolerância. cães, filhos e flores. tudo planeado para um amor de repente


e célio cupido gritou, pontapés às molas, panos da loiça pelo ar, documentos amachucados, serviços mal amanhados, ruas sem sentido! que é feito dos instantes que alinhavados uns aos outros, acrescentam formigueiros à alma e corações ao alto? e cosê-los à máquina do tempo, e serem nossos e para sempre?



1.5.12

em dias heróicos

a diagonal da minha sala é curta para piruetas e outras tangentes ao tapete. de maneira que lá foram eles mais os cravos e as convicções, às ruas deste país, já lá vai para mais de uma semana. ver como se fazem consensos pela felicidade e como somos todos primos nisto de querermos uma terra diferente.


e lá foram eles com trejeitos de heróis-a-dias a quem queriam obrigar a trabalhar neste dia.
se a força fosse outra e a solidariedade moribunda.