clarisse trabalha num primeiro andar com vista para meia civilização e uma avenida. quando para lá foi, nem suspeitava nem temia, é certo, se por cima até havia um consultório médico.
porém, tudo mudou no início do ano. o consultório fechou das nove às cinco para martelos pneumáticos e dos outros em alvoroço, todo o dia. e como em tudo o que é de saúde é urgente, aquelas obras também para três meses de suspiros, agoiros para o tecto, aspirinas e tampões nos ouvidos.
como faltavam os acabamentos, sacrifique-se a clarisse. a clarisse e a rádio do terceiro para mais três meses de emissões com ruído de obras de fundo e de discos pedidos. a dada altura ela perdeu a paciência e subiu as escadas em fúria. vermelha e inchada, ameaçou o servente e redefiniu-lhe o horário: da uma às duas e das cinco em diante.
uma semana depois, o horário estava reposto e clarisse ficou doente - ficou mesmo. e as obras pararam até que clarisse voltasse.
quase a fazer um ano de cimento e tijolo histéricos, sã clarisse desconfia do que haja ali. os ruídos soam-lhe a código e nunca se cruza com os homens das obras. os elevadores estão sempre limpos e as escadas sem rastos. o médico nunca mais voltou e a porta está sempre fechada. estranho é pouco.
até que hoje falhou a luz para regressar de surpresa e rebentar a festa no andar de cima.
enquanto clarisse lia no diário que
por falta de pagamentos e chave, trabalhadores da construção civil tinham ficado isolados num andar de categoria. constituíram família e empilhavam com mestria as caricas encurvadas.
num inédito sobre a avenida.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.